alt nov, 20 2025

Na manhã de 2 de outubro de 2022, enquanto o Brasil escolhia seu próximo presidente e governadores, vinte mulheres dentro da Unidade Prisional Regional Feminina de Barro Alto, no Norte de Goiás, fizeram algo que muitos dão por garantido: votaram. Sem sair de suas celas, sem passar por filas externas, sem enfrentar a desconfiança da sociedade, elas exerceram um direito que a Constituição garante — e que, por ironia, muitos esquecem que ainda existe. A seção eleitoral especial nº 0253, montada dentro da própria unidade prisional, foi o cenário de um ato silencioso, mas profundamente simbólico. Apenas 20 mulheres tinham direito. Mas todas tinham dignidade.

Um direito que a lei não tira — só a sentença definitiva

No Brasil, o voto é um direito de cidadania, não um privilégio. A Constituição Federal de 1988 estabelece que apenas quem foi condenado com sentença transitada em julgado perde o direito de votar. Ou seja: se o processo ainda está em apelação, se há recurso pendente, se a prisão é preventiva — o título eleitoral permanece ativo. E isso vale para todos. Homens, mulheres, ricos, pobres, presos, soltos. A Diretoria Geral do Sistema Penitenciário de Goiás (DGAP) confirmou que, das 20 detentas que votaram, todas estavam em situação regular. Nenhuma tinha condenação definitiva. Nenhuma tinha sido cassada judicialmente. Apenas estavam privadas de liberdade — não de direitos.

Isso não é novidade. Desde as eleições de 2014, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passou a exigir que unidades prisionais com mais de 15 eleitores registrados instalassem seções eleitorais próprias. A ideia? Evitar que a privação da liberdade se transformasse em privação da cidadania. Em Barro Alto, a logística foi meticulosa. A Justiça Eleitoral, em parceria com a DGAP, montou uma cabine de votação dentro da unidade, com urna eletrônica, mesários treinados e fiscalização da Polícia Militar. Tudo para garantir que o voto fosse livre, secreto e seguro — sem pressão, sem interferência, sem humilhação.

Barro Alto: uma prisão que não esconde, mas inclui

Localizada a 245 km de Goiânia, a Unidade Prisional Regional Feminina de Barro Alto é a única unidade feminina do estado dedicada exclusivamente ao recolhimento de mulheres do sistema penitenciário goiano. É um espaço pequeno — cerca de 150 presas em média — mas com uma gestão que, aos poucos, tem se distinguido por políticas de reintegração. A instalação da seção eleitoral não foi um acaso. Foi uma escolha. Em 30 de setembro, o portal Portal6 já anunciava: "Mulheres reclusas poderão votar nas eleições no próximo domingo". A Agência Cora de Notícias, braço de comunicação do Governo de Goiás, publicou a confirmação no dia da votação. Não foi um gesto de imagem. Foi um ato de justiça.

As detentas que votaram não foram levadas para fora da prisão. Não passaram por revistas extras. Não tiveram que pedir permissão. A urna veio até elas. E elas, com o dedo sujo de tinta, escolheram entre candidatos que nem sabiam que existiam dentro daquelas paredes. É isso que torna o momento tão poderoso: o voto não é um favor. É um direito. E, em tempos de descrença na democracia, ver alguém que a sociedade esqueceu — e muitas vezes condena — exercendo seu papel de cidadã, é um lembrete necessário.

Por que isso importa além de Barro Alto?

O Brasil tem mais de 80 mil mulheres presas — e cerca de 40% delas ainda não foram condenadas definitivamente. Ou seja: mais de 30 mil mulheres têm direito ao voto, mas muitas nem sabem disso. Em estados como São Paulo e Rio de Janeiro, seções eleitorais em presídios femininos são comuns. Em Goiás, são raras. Barro Alto foi um exemplo. Mas não foi o único. Em 2022, 148 seções eleitorais foram instaladas em unidades prisionais em todo o país — das quais 34 eram exclusivamente para mulheres. Ainda assim, muitas prisões não têm sequer um título eleitoral ativo registrado. Falta educação. Falta acesso. Falta vontade política.

Aqui está o verdadeiro desafio: garantir que o direito ao voto não fique apenas nas mãos da Justiça Eleitoral. Precisamos que os próprios presídios — e os profissionais que neles trabalham — saibam identificar quem pode votar, como se inscrever, onde buscar orientação. A DGAP fez sua parte em Barro Alto. Mas e nas outras 34 unidades prisionais de Goiás? Quantas mulheres lá sabem que, mesmo trancadas, ainda podem escolher quem governará o país?

O que vem depois da urna?

O que vem depois da urna?

A votação em prisões não é um fim. É um começo. Ainda que o voto não mude a condição da detenta, ele muda a percepção dela mesma. "Eu não sou só um número", dizem algumas que já votaram. "Eu ainda tenho voz." Esse sentimento é o que alimenta programas de ressocialização. É o que reduz a reincidência. É o que faz a democracia mais justa.

Em 2026, a Unidade Prisional Regional Feminina de Barro Alto deverá ter outra seção eleitoral. E, se tudo correr bem, mais mulheres estarão lá para votar. Mas o ideal não é apenas repetir o processo. É ampliá-lo. É educar. É registrar. É lembrar que, em uma democracia, ninguém é tão pequeno a ponto de não ter direito a escolher seu futuro — mesmo quando o futuro parece estar atrás de grades.

Frequently Asked Questions

Quem pode votar dentro de uma prisão no Brasil?

Apenas pessoas privadas de liberdade que não tenham sofrido condenação com sentença transitada em julgado. Isso significa que detentas em prisão preventiva, em regime semiaberto com processo em apelação, ou que ainda estão em fase de recurso mantêm o direito ao voto. O único caso de perda é quando o tribunal já decidiu definitivamente — sem possibilidade de recurso. No caso de Barro Alto, as 20 mulheres que votaram estavam nessa situação regular.

Como é feito o processo de votação em prisões?

A Justiça Eleitoral, em parceria com a administração penitenciária, instala uma seção eleitoral dentro da unidade, com urna eletrônica, mesários treinados e fiscalização. As eleitoras são chamadas por ordem de fila, entram em cabine privada, votam e saem. Tudo é registrado e fiscalizado para garantir sigilo e segurança. O processo é o mesmo de fora — só que dentro das paredes da prisão. Em 2022, foram 148 seções assim em todo o país.

Por que Barro Alto foi mencionado na mídia?

Porque é raro ver uma unidade prisional feminina em Goiás com tanta organização e visibilidade no processo eleitoral. A Unidade Prisional Regional Feminina de Barro Alto é a única do estado dedicada exclusivamente a mulheres, e a gestão local fez um esforço para garantir que todas as detentas com direito ao voto fossem informadas e orientadas. A Agência Cora e o Portal6 deram destaque por ser um exemplo de cumprimento de direitos humanos em um contexto onde isso ainda é raro.

O voto das detentas influencia os resultados eleitorais?

Não diretamente. As 20 votantes de Barro Alto representam uma fração mínima do eleitorado nacional — menos de 0,00002% do total. Mas o impacto é simbólico. Mostra que a democracia brasileira ainda inclui os mais excluídos. E que, mesmo quando a sociedade os ignora, o Estado, por lei, os reconhece. É isso que diferencia um regime democrático de um autoritário: a inclusão, não a exclusão.

O que mudou desde 2014 para facilitar o voto em prisões?

Antes de 2014, a votação em prisões era irregular e dependia da boa vontade das autoridades locais. Em 2014, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) editou resolução obrigatória, exigindo que unidades com mais de 15 eleitores registrados instalassem seções próprias. Também foi criado um sistema de cadastro específico para detentas, com apoio das secretarias estaduais. Desde então, o processo se tornou mais padronizado — embora ainda enfrentando desafios de logística e conscientização.

As detentas que votaram em Barro Alto têm direito a se candidatar?

Não. Embora tenham direito a votar, a legislação eleitoral brasileira impede que pessoas privadas de liberdade se candidatem a cargos eletivos — mesmo que não tenham condenação definitiva. O artigo 14 da Constituição proíbe candidaturas de pessoas presas. Essa é uma limitação que vai além do voto. Mas o direito de escolher quem governa — mesmo que não possa governar — continua intacto.